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O MP3 mutila o som e a audição

Gilles Tordjman - Le Monde - França

Todos aqueles que não renunciaram aos prazeres da festa já vivenciaram a seguinte experiência, ao menos uma vez. Numa casa ou num apartamento onde se acotovelam mais de cinqüenta pessoas que estão consumindo bebidas de alto teor alcoólico, diversos jovens, homens e mulheres, DJs por uma noite, medem forças na escolha das músicas, em volta do equipamento de som. É verdade, isso não é nenhuma novidade. Contudo, um ou dois detalhes assinalam que os tempos mudaram radicalmente. Em primeiro lugar, os computadores portáteis, laptops, e ainda as chaves USB tomaram o lugar dos toca-discos de vinil – as antigas “vitrolas” -, embora estes tivessem conhecido uma espécie de renascimento alguns anos atrás. Além disso, o volume está excessivamente alto. E, acima de tudo, ninguém está dançando, o que é um cúmulo. Por que, e de que maneira chegamos a esse ponto? A resposta poderia resumir-se em duas letras e um número: MP3.

Este novo padrão de áudio que se impôs de maneira fulgurante no espaço de poucos anos já foi objeto de uma abundância de comentários. Se acreditarmos nas informações divulgadas pelas grandes companhias de discos, ele seria o responsável, por si só, pela “morte” do CD; por planos de reestruturação de empresas mais sangrentos do que um filme de série B “made in Hollywood” – e por que não, também, pelo aquecimento climático, pela poluição dos oceanos ou pelos desequilíbrios géo-estratégicos, já que o negócio delas é bater forte contra o MP3?

Isso porque todos, absolutamente todos os debates que foram suscitados por esta nova forma de partilha da música se limitaram exclusivamente a focalizar os problemas jurídicos que ela provoca, ou seja, os direitos autorais, a propriedade intelectual, a pirataria, e ainda o “download legal”. O emblema de uma vitória da razão econômica, o MP3 despontou como a tecnologia ideal. Ele despertou uma empolgação que acabou ofuscando todos os outros problemas estéticos, técnicos e sanitários que esta novidade, contudo, apresentava. E que ela continua apresentando até hoje. A seguir, tentaremos explicar por que e como isso aconteceu.

Culto do “belo e bom som”

O homem que está falando, sentado a uma mesa de um café do 9º distrito de Paris, não é um passadista saudoso até o fanatismo dos “bons velhos tempos”. Um aficionado esclarecido da música popular francesa e colaborador da ótima revista de pequena tiragem “Je chante” (Eu canto), Raoul Bellaïche não consegue refrear certa nostalgia: “Recordo-me muito bem daquele período em que os equipamentos de alta fidelidade custavam bastante caro, ainda que o grande público estivesse disposto a fazer sacrifícios financeiros por um bom equipamento. Então, tudo mudou por completo no espaço de cinco ou seis anos. Pouquíssimas pessoas perceberam que o advento do MP3 constituiu a primeira vez em que um retrocesso foi apresentado como um progresso. Todo mundo acostumou-se com ele, inclusive eu mesmo, sobretudo por ser um formato tão prático”.

Prático: a palavra foi pronunciada. Evidentemente, antes dele, as coisas eram menos práticas: o culto da alta fidelidade e do “belo e bom som”, compartilhado por um grande número de ouvintes, quer estes fossem musicomaníacos ou não, pressupunha a aquisição de um equipamento quase sempre volumoso e todos os sacrifícios financeiros que acompanhavam tal compra. A diversidade da oferta correspondia perfeitamente a essa demanda: os fabricantes ofereciam aparelhos dedicados, a preços que correspondiam a todos os bolsos. O consumidor casava os equipamentos uns com os outros, movido pela ilusão ingênua e bonita de estar desfrutando da melhor reprodução sonora possível. A paixão dos nossos pais pelos prazeres auditivos se concentrava nisso: a sensação de que, ao combinar aquele toca-discos com determinado amplificador, e aquele cabo com determinadas caixas de som, o usuário tornava-se o cineasta de um filme doméstico cujo título havia sido inventado pela gravadora ECM, o célebre selo de jazz europeu: “O mais belo som depois do silêncio”.

Aquele tempo parece ter ficado definitivamente para trás. O ouvinte do passado, para quem a audição era uma atividade nobre à qual ele sacrificava parte do seu tempo, deixou o lugar para uma “audição nômade” da música. Ao permitir que o usuário armazene num espaço físico reduzido uma quantidade enorme de música, o MP3 inventou uma coisa totalmente nova: a acumulação furtiva. Isto é, a capacidade de se possuir quantidades sempre maiores de música, mas de se tirar sempre menos proveito dela, uma vez que desde então, o tempo dedicado à audição passou a sobrepor-se a outras ocupações.

O fantasma da gratuidade acabou completando o quadro de um avanço tecnológico que todo mundo ou quase concorda em achar excelente. Aqueles que se atrevem a emitir uma crítica a seu respeito, por mais benigna que ela seja, podem ter a certeza de se tornarem prontamente objetos de alguma zombaria na qual o epíteto de “reacionário” sempre acaba sendo proferido, a ironia pesando, sobretudo, contra a famigerada expressão “era melhor antes”. Contudo, ao que tudo indica, no caso de que estamos tratando aqui, são grandes chances para que, de fato, as coisas tivessem sido realmente melhores antes. E de que elas poderiam ser muito melhores amanhã.

Drástica perda de qualidade

O que vem a ser, ao certo, o MP3? Apenas um formato de codificação dos dados de áudio que permite dividir por dez o tamanho de um arquivo informático. Assim, desmaterializada desta forma, a música pode circular mais rapidamente do computador ao “player” digital. Só que o preço a pagar é o de uma mutilação indiscutível do sinal de origem e de uma drástica perda de qualidade. É o que explica Lionel Risler, um dos engenheiros de áudio mais respeitados por conta do seu trabalho de ourives em matéria de restauração de antigas gravações: “No caso do MP3, optaram arbitrariamente por retirar do sinal tudo o que era supostamente supérfluo. Mas, eles assim fizeram baseando-se em critérios muito questionáveis. Eles reduziram a quantidade de informações para ganhar espaço para o armazenamento. No começo, o MP3 foi concebido apenas com o objetivo de acelerar os fluxos dos dados na Internet. Depois disso, abriram a caixa de Pandora, uma vez que esta circulação se desenvolveu sem regra alguma”.

Essa compressão dos dados, que também tem os seus defensores, vem acrescentar-se a uma outra técnica de tratamento do som, que já vinha sendo praticada há muito tempo na gravação/reprodução das músicas populares: a compressão dinâmica. Explicada de maneira esquemática, a compressão dinâmica consiste em elevar os níveis reduzidos e em reduzir os níveis intensos, ou seja, em apagar os contrastes que conferem todo o seu relevo à música. Qual seria o interesse disso? O de poder reduzir o volume de informações, tendo em vista um armazenamento ou uma difusão por meio de um sistema ou sinal dotado de uma faixa de freqüência limitada, em hertz, no rádio ou na Internet, por exemplo, enquanto ele permite induzir simultaneamente uma sensação de potência sonora, parcialmente artificial.

“O ouvido não está educado para receber sinais comprimidos”, explica David Argellies, um jovem engenheiro em acústica que, nas horas de lazer, aprecia o “som da pesada”. “As rádios dirigidas ao público jovem são mais cansativas em nível equivalente, porque o ouvido está acostumado a perceber fortes contrastes dinâmicos. Ao passo que a compressão tende a achatar esses contrastes. Isso funciona como uma ilusão de ótica. Quando ouvimos uma música que foi comprimida – uma música que havíamos ouvido anteriormente, com equipamentos que transmitiram os sons em toda a sua plenitude -, nós tenderemos a aumentar o volume para recuperar seus contrastes”.

Além disso, o volume médio de um som dinamicamente comprimido pode ser realmente mais elevado. Isso porque, para reduzir as diferenças entre as variações de uma música, é preciso escolher um volume de referência; e se este for o volume máximo da música que foi escolhida, os níveis reduzidos são consideravelmente aumentados de modo a se alcançar a diminuição de amplitude desejada. “Vamos tomar como exemplo os anúncios publicitários na televisão”, comenta David Argellies. “O nosso ouvido tem a impressão de que, durante o intervalo para os comerciais, o volume do som aumentou; isso porque as suas sonoridades foram mais comprimidas, o que tornou esses anúncios mais agressivos”.

Quando se fala em agressão, estamos abordando um terreno que, evidentemente, está sujeito a todo tipo de polêmicas, mas que não pode ser reduzido a um combate de antigos contra modernos ou a uma cruzada contra a música que os jovens estão curtindo. Isso porque, já faz algum tempo, muitos são os cientistas, e em certos casos, até mesmo os jovens usuários, que andaram disparando o sinal de alarme no que diz respeito às conseqüências sanitárias deploráveis que esses novos modos de audição terão inevitavelmente sobre as novas gerações.

Bernard Janssen, um cirurgião otorrinolaringologista e cantor lírico de alto nível – ele fez carreira sob o nome de Bernard Sinclair -, é sem dúvida um dos profissionais mais aptos para analisar o fenômeno: “As pessoas que ouvem música com fones dentro do metrô são obrigadas a aumentar o volume para encobrirem o barulho ambiente. Isso é terrível, por que elas chegam a submeter seus ouvidos a uma carga sonora que pode subir até 140 decibéis, enquanto o limite de dor física situa-se em 120. Quando o volume se limita a 70 decibéis, ainda é tolerável. Alguns cantores líricos podem desenvolver sons de até 130 decibéis sem precisarem preocupar-se com os seus ouvidos, porque eles projetam o som e que existem defesas fisiológicas para protegê-los. Mas, uma única exposição a esse volume é suficiente para sofrer um traumatismo que desembocará numa surdez. Trata-se do traumatismo agudo. Existe um traumatismo crônico, que pode ser constatado com freqüência entre os operários que trabalham em canteiros de obras, mas que passou a ser detectado também entre as pessoas que ouvem música em volume excessivamente alto nos seus ‘players’ digitais. Este é um problema muito mais insidioso porque quanto mais se perde a audição, quanto mais a tendência é aumentar o volume”.

Daqui para frente, este passa a ser um fato comprovado: a compressão dinâmica, aplicada à esmagadora maioria das músicas atuais, só faz agravar os danos que já são bem conhecidos, provocados por um volume sonoro excessivo. E isso vale também para as músicas aparentemente mais “suaves”. Foi nesse contexto que dois pesquisadores aficionados de rock, Yann Coppier e Thierry Garacino, se dedicaram a efetuar complicadas medições a respeito da evolução da compressão dinâmica, cobrindo um período de trinta anos. O resultado é convincente: a música “Rock and Roll”, do Led Zeppelin, que era considerada no início dos anos 1970 como uma das criações mais violentas já gravadas, comporta um nível de compressão muito limitado se comparado com “Quelqu’un m’a dit”, o primeiro sucesso de Carla Bruni, uma música quase folk, eminentemente acústica.

É nisso que se esconde toda a perversidade dos tratamentos modernos do som: a balada um pouco adocicada daquela que passou a ser a primeira dama da França se revela, avaliada à luz da fria objetividade das medições científicas, muito mais nociva para o aparelho auditivo do que o hino hard rock do Led Zeppelin. Por meio da compressão, “um técnico transforma a cadeia dos Alpes nos antigos vulcões apagados e quase planos da Auvergne”, resume com certa poesia Yves Cochet, um especialista histórico do desenvolvimento de sistemas de alta fidelidade de ponta.

Reaprender a ouvir

Contudo, o desaparecimento dos contrastes não representa apenas uma violência estética praticada contra a verdade musical. Ele também constitui um verdadeiro risco para a saúde, o qual os cientistas já começaram a estudar de muito perto. Estudos recentes mostraram que um aparelho auditivo desacostumado aos contrastes dinâmicos está fadado a perder progressivamente a sua acuidade, e isso, até mesmo ouvindo música em baixo volume. Será o caso de se temer o fantasma de uma pandemia de surdez precoce?

“Andei recebendo em meu consultório um número crescente de jovens de 18 a 20 anos que já vêm desenvolvendo surdezes bastante graves”, resume com fatalismo Bernard Janssen. “Eu sou muito alarmista e quero insistir claramente no seguinte ponto: vai ser preciso legiferar a respeito desse problema. Ainda assim, não sou nem um pouco otimista: numa época em que todos tanto se preocupam com a liberdade individual, todo cidadão é evidentemente livre para se tornar surdo como bem entende”.

Reaprender a ouvir, sensibilizar a pessoa para a qualidade do som em detrimento da quantidade. Estas serão sem dúvida as únicas soluções para se evitar uma crise sanitária de grande vulto. A menos que, daqui a pouco, sejam inventadas novas tecnologias mais respeitosas da saúde pública do que têm sido a compressão dinâmica e o MP3. O qual não deixa de ser, na opinião geral dos especialistas, o pior padrão já inventado em toda a história da música gravada.

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